quarta-feira, novembro 23, 2011

The Truman Show

A cidade vigiada. The Truman Show, de Peter Weir, 1998
Rosa Moura


sinopses
Tendo 1984, de George Orwell, publicado em 1949, como pano de fundo, o Show de Truman é uma parábola sobre o totalitarismo, aonde a reescrita da história e a manipulação da memória moldam a ideologia e permitem a dominação




O ser vigiado
O Show de Truman, inevitavelmente, remete a 1984, de George Orwell, publicado em 1949, que é uma parábola sobre o totalitarismo (fábula ao regime soviético de então ou antecipação ao império norte-americano de agora?). O Grande Irmão, onipresente, observa em todos os momentos, vigia os atos, reflexões, submete, impede a individualidade. Como Christof, (re)escreve a história e manipula a memória, cria o espaço ao qual atem o personagem, molda a ideologia, faz prevalecer seu poder de dominação.
Essa utopia negativa há muito tempo se tornou realidade. Desde 1984 até nossos dias foi se estruturando um mundo apoiado em signos e na sutileza de um discurso hegemônico, massificado sob compulsão ao consumo. Vive-se “hoje no mais totalitário de todos os sistemas, cujo centro é formado pelo próprio Ocidente democrático. (...) A voz do Grande Irmão é a voz do mercado mundial anônimo; e a ‘polícia do pensamento’ das relações democráticas de concorrência funciona de forma muito mais refinada do que todas as polícias secretas” (2).
Na leitura das parábolas orwellianas podemos nos reconhecer a nós mesmos como os prisioneiros desse sistema amadurecido. Pequenos Trumans, em menor evidência, mas cativos do mercado, seduzidos pelo consumo subliminarmente imposto pelo merchandising do reality show (3), ao qual assistimos como substituto de nosso próprio cotidiano.
Truman rechaça a farsa, ao tomar conhecimento dela. Mas, a sociedade contemporânea, se entrega à manipulação por um poder central, que elabora o “pensamento” do indivíduo e recria o imaginário coletivo. Então, consente e até deseja ser observada. Celebridade é ser visto, independente da circunstância. O objeto do desejo é estar no centro da cena, o que torna a sociedade de controle difuso em que “a exposição da privacidade é um valor, não uma tortura.” (4).
Interpassivos (5), destituídos do espaço enquanto esfera pública, amendrontados com relação ao outro, despolitizados e invadidos na privacidade. Protagonistas ou figurantes? Poder e dominação, simulação e virtualismo, técnica e exclusão. Eis os elementos que nos levam a uma cidade vigiada.
Os olhos do poder
De forma similar a Truman, o exercício do poder e da dominação sobre as pessoas, exacerbado, faz-se circular por canais cada vez mais sutis. Captura os indivíduos, sua ação cotidiana, seus corpos. Onipresente nos objetos construídos, olhares vigilantes imiscuem-se nas mais íntimas formas de relações sociais.
A partir do olho imperceptível de lentes e chips, a sociedade é constantemente vigiada. Tecnologias sem fio – bina, celular, câmeras, células óticas, sensores eletrônicos de digitais, da íris, rastreadores, satélites – significam tanto novas liberdades como nova escravidão. Nas ruas, lojas, supermercados, bancos, caixas eletrônicos, portarias, elevadores, deixou de ser constrangedora a presença disseminada do aviso simpático e ao mesmo tempo ameaçador: Sorria. Você está sendo filmado!

Uma eterna vigilância paira sobre edificações, equipamentos, veículos em movimento, e não só serve à segurança como ao controle. Da “inteligência geográfica”, que georreferencia objetos urbanos e indicadores pessoais, até sistemas contendo a seqüência genética dos indivíduos estarão à disposição, não só de órgãos de segurança, como do mercado de trabalho e de consumo.


A cidade é aprisionada, intermediada pela tela. Tecnologias de informação e comunicação instalam o presente permanente (sem memória coletiva), a ubiqüidade, o tempo real na irrealidade do espaço virtual. O espaço público das relações interpessoais cede lugar ao espaço privatizado, mediado por máquinas. O diálogo passa a ser teclado ou monitorado: instaura-se uma conversação muda, ou, se sonora, sem alma, sem tato, sem o calor da presença. A abertura planetária cria o isolamento dos indivíduos, cativos diante da tela, num processo de comunicação solitária (6).
A cidade se superexpõe. Entrega-se à invasão imperceptível do interior dos espaços públicos e privados, e a mutação dos papéis. A instantaneidade dos meios de comunicação permite uma sucessão de eventos espetacularizados, banalizados, expostos a uma sociedade que a tudo vê, entretanto como espectadora, irresponsabilizada: a queda das Torres Gêmeas, no 11 de setembro, foi o mais bem acabado “efeito especial” jamais visto ao vivo pela maioria da população mundial (7).
O usuário, em permanentes deslocamentos, e não o habitante, marca a cidade. A arquitetura tem de adaptar-se a interlocutores em trânsito, a transeuntes desconhecidos que impõem o risco. Como suporte, apóia-se na tecnologia da invasão: “equipada com objetos de controle, a porta da cidade deixa de ser o gate, o arco do triunfo, e passa a se constituir de ‘sistemas de audiência eletrônicos’, ‘pórticos magnéticos’, que interceptam o suspeito no trajeto” (8). Bancos de dados sucedem aos portais e as redes não se inscrevem no tecido construído, mas na interface homem/máquina. A cidade desprovida de portas encontra alternativas invisíveis para a infinidade de rupturas. Serve-se de fechamentos, certamente menos aparentes que as portas da antiguidade, mas não menos limitantes e segregativas (9).
No ideal de Jeremy Bertham, a visibilidade deve ser organizada inteiramente em torno de um olhar dominador e vigilante. Uma visibilidade universal, agindo em proveito de um poder rigoroso e meticuloso. O Panopticom, editado no final do século XVIII (10), é um sistema ótico inovador, que permitia exercer bem e facilmente o poder. O modelo disciplinar do “panoptismo”, capturado por 1984, de Orwell, persiste e se aperfeiçoa nos dias de hoje, com seu poder vigilante e coercitivo. “Não é preciso mais confinar ninguém, já estamos numa prisão sem grades, virtual (...)” (11).
A cidade simulacro
Concentração e objetos construídos dão materialidade e deixam perpassar os olhos do poder. Na cidade, a arte de planejar, organizar, gerir, produz espaços que moldam moradores sob interesse de um Grande Irmão. Verdadeiros cenários que aprisionam e sintetizam a realidade: como revela Marlon, “nada do que se vê no Show (de Truman) é falso; é meramente controlado.”
A cidade prevista, e que prevê, cria um “patriotismo” (12) e uma sensação de bem estar, que a torna única, insubstituível, isenta a críticas. Essa produção artificial do espaço, numa ordenação da cidade mediada pela interação criador/criatura, constrói o citadino, despolitizado do significado de cidadania, naturalmente pacífico, porém exigente, instituído de aguçado senso estético, ávido pela modernização e revitalização das formas urbanas, e dotado de um inabalável amor cívico pela sua própria cidade (13). “Enquanto estes (os cidadãos) se dividiriam quanto a visões ideológicas, projetos de sociedade e prioridades nacionais, os citadinos estariam acima (ou além) destas pugnas” (14).


Na cidade tornada palco, o citadino se destitui da capacidade criadora e transformadora, assumindo o perfil de consumidor do produto urbanismo, desvinculando-se de seu papel político enquanto agente da produção do espaço e da cidadania. Um citadino-objeto, associado à imagem da cidade sujeito, como um filho obediente, no colo de uma mãe dedicada.
Essa cidade, concebida para que tudo funcione equilibradamente, é apenas um simulacro no qual todos estão felizes, integrados, adaptados, cumprindo seus papéis determinados, sem imprevistos ou sobressaltos (15).
Resgatando de Baudrillard as idéias de “simulacro” e “hiper-realidade”, Soja discute a recriação das cidades, a partir de uma “cópia exata de um original que já não existe – ou talvez nunca tenha existido: ele se adianta ao processo mais simples da simulação para criar farsas e fantasias ‘reais’ que funcionam não apenas como imagens e ícones, mas como parte de nossa realidade material” (16). Verdadeiras “simcities” (17); perfeitas “disneylândias” (18). A “cidade simulacro” se faz marcar pelo “crescente poder político e social das simulações do real como substitutos lógicos e comportamentais para eventos e condições materiais reais” implicando “uma mudança radical no imaginário urbano, nas maneiras pelas quais relacionamos nossas imagens do real com a própria realidade” (19).
A construção de tal simulacro se dá a partir da produção de um verdadeiro e cotidiano espetáculo (20), no qual os cidadãos, transformados em consumidores do tema proposto, tornam-se seus atores figurantes. A cidade é reinventada (21), tematizada (22), commoditizada (23), iconificada pelo uso abusivo do city marketing, que transfigura a organização original e fixa novos valores diretamente relacionados com o consumo imposto pela ideologia dominante (24). Desconstrói as possibilidades de participação política e elimina os pressupostos que permitiriam a gestão democrática do espaço urbano.
Seahaven, Pleasantville (25) ou Disneylândia se multiplicam enquanto cidades planejadas/modelos de cidades, configurando uma imagem de equilíbrio e a materialização do consumo. Abusam da realidade virtual, da simulação e do mascaramento das assimetrias de poder, criando no imaginário coletivo a fantasia de uma cidade segura, civilizada, asséptica. Simples parques temáticos ou hiper-realidades concretas, baseiam-se em redes industriais de serviços, articulando a mídia, o capital imobiliário, o entretenimento, em uma cultura pública do consumo de um espaço de qualidade (26). Multiplicam-se também enquanto partes da cidade, no formato de grandes condomínios comerciais e residenciais auto-suficientes, shopping centres, espaços multiplex culturais e de lazer, grandes áreas revitalizadas, gentrificadas, business district centres ancorados por corporações comerciais ou financeiras. Entregam-se a não-lugares que se replicam em todas as geografias, pautados em um sistema de ações com intencionalidades globais que modificam a paisagem e estrangulam os hábitos – MacDonalds, Blockbuster, Wal Mart, Alphaville são os símbolos mais bem acabados do processo. Traços originais do lugar são preservados apenas como cópias mal elaboradas de uma memória apagada. Em substituição, são criados ícones urbanos que se apropriam da história, outorgam valor ao solo e à cidade, segregando populações insolváveis e inserindo a urbs num mercado mundial de alta competitividade.
Tais espaços simulacros são mistos de cultura visual, controle espacial e administração privada que alimentam o desenvolvimento da cidade e encaminham o poder local para modelos público-privados de expansão de negócios. Indústrias do imaginário, na qual todos obedecem sorridentes a uma engrenagem em que o trabalho comparece disfarçado de animação (27), ou em que a competência técnica projeta num cad a cidade do pensamento hegemônico, tornada “ideal” para todos os segmentos.
A cidade simulada para a perfeição enclausura, afasta a realidade da produção imperfeita do espaço e do cidadão. Omite as contradições inerentes ao espaço e à sociedade. Exorcisa a segregação (Baudrillard) num postiço mundo da sociabilidade cordial, por assim dizer ficcionalizada que, sob a fachada de um splendid new world, escamoteia o lado sombrio da violência, da pobreza e do trabalho precarizado (28).
Mais perfeita é a cidade – portanto mais cercada –, mais se tornam agudas as suas contradições. A cidade se torna cidadela.
A cidade cidadela
A cidade protagonista do desenvolvimento se apóia no modo produtivista para, incorporando os recursos da técnica, construir sua modernidade. Velocidade e inteligência são atributos indispensáveis aos novos equipamentos urbanos. Atributos, porém, que fazem uma modernidade incompleta, que superpõe traços de opulência, devido à pujança econômica e as expressões materiais, a traços de desfalecimento, graças ao atraso das estruturas sociais e políticas na qual se insere (29); ou uma modernização inconclusa, limitada em termos da cidadania política e social (30). Em tal cidade exclusão e segregação tornam-se naturalizadas e prevalece o estado da exceção.
O exercício de controle sobre o espaço urbano se aperfeiçoa e se expressa na arquitetura do medo. Barreiras físicas e de vigilância – muros, grades, guaritas, cercas elétricas, alarmes, sistemas de monitoramento, leitores infra-vermelho – aperfeiçoam e diversificam a cidade carcerária, de Foucault, fazendo emergir a cidade-prisão, lugar em que a polícia substituiu a polis (31). Pouco diferente da cidade cenário que, mesmo de papel, enclausura, impede que Truman navegue para a liberdade.
A cidade é produzida para um segmento, não para o todo. Incluídos e excluídos passam a disputar o espaço e os eventos, postos lado a lado. Ao mesmo tempo em que usos voltados aos segmentos de média e alta renda invadem as já adensadas periferias carentes, concorrendo com loteamentos baratos parcelas de solo ainda disponíveis, a ocupação pobre cada vez mais adentra as áreas nobres, preenchendo ilegalmente os interstícios possíveis.
Nesse processo de apropriação, a cidade se torna violenta. O poder e a propriedade que já se apartaram da miséria com cercas invisíveis, passam a se proteger em fortificações com acesso controlado por seguranças armados, constituindo enclaves (32), comunidades fechadas, e colocam em evidência o fenômeno da blindagem de veículos e edificações, criando espaços invioláveis, autênticos cofres-fortes, que dão sensação de proteção a uma minoria iludida de que, dessa forma, “sobreviverá, encouraçada, à barbárie social que a cerca”. Os simulacros materializados “nos condomínios fechados, shopping centers, centros culturais, edifícios ‘inteligentes’ são os novos guetos pós-modernos da minoria incluída nos negócios locais das empresas transnacionais” (33). Tais condomínios e centros comerciais, controlados por regras de admissão e exclusão, inibem a passagem e a convivência democrática, antes garantida por ruas abertas, restringindo o direito da cidadania.
Noutro extremo, os já “guetificados” espaços da pobreza – enclaves também cercados, vigiados, protegidos, sob ordens de controles cada vez mais inconcebíveis, alvos de propostas cínicas (34) – se reproduzem nos “morros”, nas “vilas” e “jardins” das periferias, nas ocupações dos espaços públicos centrais, logradouros, pontes e vigas de viadutos. Territorialidades onde os números fatais da violência crescem com o tráfico, a criminalidade, a miséria, com a não-submissão à lei do silêncio.
A ameaça explícita da violência desses redutos constrange a cidadania: ao se “proteger”, a sociedade ameaça. A metáfora de Virilio de uma cidade formada por uma elite que viverá em bunkers e por miseráveis que vão atacá-la (35) é simplista diante dos imbricados embates cotidianos e dos comandos territorializados que se multiplicam.
A ostentação da cidade hegemônica, com direitos e lugares, é uma agressão à cidade dos não-cidadãos. A arquitetura da proteção, fruto da exclusão explícita, recria as fachadas e as funções do edifício, abre acessos privados aos condomínios fechados e entre centros comerciais, designs que transformam espaços públicos historicamente heterogêneos em passarelas isoladas da “tensão da rua”, negando “as expressões espontâneas e inesperadas da vida”, evitando o “confronto com a realidade” (36). “A cidade, de lugar da hospitalidade, torna-se inóspita ao acolhimento do outro e cristaliza-se na cidadela, que é lugar fortificado onde só se reconhece o mesmo.” (37)

O temor da cidade imperfeita, insegura, torna a casa cela. O contato com o mundo passa a ser mais e mais mediado pela tela que, ao mesmo tempo que entretém, atualiza fatos sobre os perigos da rua. O reality show recria, dessa forma, a cotidianeidade abdicada pelo medo; e o olhar eletrônico desloca-se do debate e do conflito coletivo para colocar em destaque o conflito individual, absorvido pela passividade dos citadinos em viver seu cotidiano projetado nesse show da vida.
Desigualdade e dominação expressas nas condições de vida e de poder se complexificam. Áreas nobres e pobres, cidade legal e cidade ilegal foram contraposições de imagens que no passado caracterizaram uma aparente dualidade do espaço urbano. O desenho pós-moderno expõe, sem subterfúgios, um único ambiente “promíscuo”, perfeitamente ajustado à sua lógica de produção. Privilégios se entrecruzam com privação – áreas “luminosas”, inseridas na dinâmica resultante da técnica, da velocidade, das redes mesclam-se a áreas “opacas”, imersas em “tempos lentos” (38), nas quais a imobilidade das pessoas leva a cidade a se tornar tal conjunto de guetos e transforma sua fragmentação em desintegração (39). “Guetos” que, longe do sentido clássico, representam a exclusão que surge da mescla entre a pauperização e o racismo; cidadelas, como “feudos” em que os ricos se escondem do resto da sociedade (40).
A cidade fragmentada em territorialidades afronta e recua, provoca e protege-se, enclausura-se em espaços vigiados; ao mesmo tempo vigia.
Vigiar a exceção
Diferentemente do espaço delimitado do cenário, no qual há pleno controle das contradições programadas na ficção, o espaço real, vivido, deixado “ao quase exclusivo jogo do mercado, (...) consagra desigualdades e injustiças e termina por ser, em sua maior parte, um espaço sem cidadãos” (41). De cidadão a consumidor, o citadino, induzido pelas vitrines do desejo redecoradas pelos ares da globalização, desencadeia uma ordem de violência onipresente na contínua dissolução da vida social. O apelo ao consumo é inexorável e intangível para as maiorias, o que provoca o confronto e aumenta a tensão urbana.
Um estado de exceção se perpetua nas relações sociais: do silêncio da ditadura política à submissão dos mandos do mercado. A flexibilização do trabalho torna a informalidade regra, o emprego incerto e o futuro imprevisível; a financeirização dos orçamentos públicos retira a autonomia dos estados, e as políticas sociais relegam o projeto de mudar a distribuição de renda transformando-se em “antipolíticas de funcionalização da pobreza” “As cidades são os lugares por excelência dessas exceções” (42).
Crescentes hordas de excluídos assustam, são uma ameaça ao conforto dos que usufruem a modernidade urbana. Na sociedade sem cidadania, as classes ditas “subalternas são e carregam os estigmas da suspeita, da culpa, da incriminação permanente” (43). O outro tornado inimigo legitima o controle indiscriminado, fazendo romper a possibilidade da cidade como o espaço da produção de relações. “A morte da polis é (pois) a morte da política e a negação da negação: todo o espaço público deve ser privatizado, deve estar sob o olhar panóptico, porque o perigo é o público. (...) Não há mais política: há tecnicidades e dispositivos foucaultianos que se impõem com a lei da necessidade. Adequamos nosso discurso para reconhecer a ‘realidade’e em nome dela, planejar a exceção”.
Exacerbados os riscos, desviadas as formas de enfrentamento das fontes do perigo e canalizadas para alvos errados. Pobres, negros, nordestinos, árabes, muçulmanos. “Quando a complexidade da situação é descartada, fica fácil apontar para aquilo que está mais à mão como sendo a causa das incertezas e ansiedades modernas” (45).
Os pactos de coexistência que fizeram da cidade um lugar de sociabilidade, mesmo que estreitamente vigiada, caem no vazio. O equilíbrio entre a ordem e a desordem dá lugar a uma “desordem armada”; a cidade do encontro e da convivência se converte no lugar do enfrentamento e da defesa contra o outro. Nem mesmo a sobrevivência está mais assegurada.
Como desculpa para conter a avalanche da violência e da criminalidade, a policialização da sociedade incita uma guerra civil mal disfarçada. A aglomeração se torna frágil, ameaçada, e se coloca em permanente estado de vigília. Na esfera mundo, emerge a “metropolítica do terror”.
Hiperpotências são ridicularizadas sob a novidade da ameaça inesperada que surpreende a velocidade absoluta dos mísseis, dos exércitos e dos serviços de informação. A sincronização das emoções sentidas em escala mundial, viabilizada pela informação/comunicação, no lugar de fazer emergir uma democracia mundial, oferece elementos ao terrorismo, que joga com a instauração do pânico mundial.
Acuados diante do inimigo imprevisto, estamos assistindo a uma “metamorfose dos conflitos”. A cidade aperfeiçoa seus métodos de vigilância; os olhos do poder afinam o foco e disseminam os alvos. Ninguém mais está salvo, afinal, o “exterminador está entre nós”.
O ser libertado
O ser vigiado enfrenta o “diálogo” com o “Grande Irmão”: Christof tenta convencer Truman a permanecer na cidade, usufruir Seahaven que é um “modelo de mundo”.
Mesmo assim, Truman decide. Adentra o escuro oferecido por uma porta que o liberta de um mundo previsível.
A sociedade ao mesmo tempo em que se aprisiona, assiste de suas celas/cidadelas a libertação do personagem. Torce por ela.
Mas se reforça em seu aprisionamento, consumindo o produto recomendado pelo merchandising do reality show. Como em 1984, o sinistro já não é tanto a coerção externa, mas muito mais a interiorização dessa coerção (49).
Assim, mal liberto Truman de seu espaço-simulacro, a audiência busca saber o que está passando em outro canal.

0 comentários:

Postar um comentário